UM COMENTÁRIO A O DOM DA AUTORIDADE
DA COMISSÃO INTERNACIONAL ANGLICANA–CATÓLICA ROMANA
William Henn OFM Cap.
O Dom da Autoridade procura aprofundar e ampliar o consenso sobre um dos mais difíceis tópicos enfrentados pelo movimento ecumênico. O próprio documento reconhece isso claramente, entretanto não se furta a assumir uma postura corajosamente positiva:
Há um vasto debate sobre a natureza e o exercício da autoridade, tanto nas igrejas quanto na sociedade em geral. Anglicanos e Católicos Romanos desejam dar testemunho, para as igrejas e para o mundo, de que a autoridade exercida de forma correta é um dom de Deus para trazer reconciliação e paz para a humanidade.(1)
Se esse texto não desse outros frutos além de simplesmente associar, uma e outra vez, na mente dos seus leitores e na daqueles que, por acaso, olharem seu título de relance, as noções de “autoridade” e “dom”, já estaria prestando um serviço valioso para a unidade cristã. Não pode jamais haver reconciliação, entre comunidades cristãs divididas, sobre o tópico da autoridade, a não ser que essas comunidades vejam a autoridade como algo positivo.
Mas, à parte o benefício utilitário de contribuir para maior unidade, uma abordagem positiva da autoridade, que a conceba como um dom de Deus, é necessária principalmente porque tal abordagem é verdadeira. De fato, Deus quer que a Igreja seja guiada pela graça de Sua própria autoridade, atuante nas missões salvadoras do Filho e do Espírito Santo. O evangelho de Mateus termina com as palavras inspiradoras e consoladoras de Jesus:
Toda a autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Ide, pois; de todas as nações fazei discípulos, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-as a guardar tudo o que vos ordenei. Quanto a mim, eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos tempos (Mt 28, 18-20 [TEB]).
Essa autoridade é compartilhada de forma única com aqueles que, em sucessão aos apóstolos, são ordenados para o ministério de bispo e encarregados de servir à unidade da Igreja na fé e na caridade. Ao desempenhar esse ministério, segundo as necessidades do tempo e das circunstâncias, têm o dever de decidir sobre questões relativas à doutrina e à vida da Igreja. Essas são convicções que, na época da divisão entre a Igreja da Inglaterra e a Igreja Católica Romana, não eram motivo de disputa entre as duas comunidades. A ARCIC II pretende confirmá-las novamente, e fazê-lo no contexto de uma reflexão eclesiológica sobre a natureza e o exercício da autoridade na Igreja em geral. Esse contexto, portanto, torna possível uma tentativa serena e cuidadosa de se atingir um entendimento comum de um ponto que era objeto de controvérsia por ocasião da ruptura entre as duas comunidades: o ministério primacial do bispo de Roma a serviço da unidade universal.(2)
Outra característica do referido texto é sua “catolicidade”, no sentido pleno e amplo do termo, segundo o qual tanto Anglicanos quanto Católicos Romanos consideram-se “católicos”. Essa qualidade é particularmente percebida na recusa inflexível do documento em se deixar prender a falsos disjuntivos ou apontar como opostas características da vida cristã que, na verdade, devem ser unidas em complementaridade. Desse modo, O Dom da Autoridade recusa-se a opor a liberdade à obediência. Jesus, que partilha a verdade que nos torna livres (Jo 8,31), é o mesmo que, ao aceitar a vontade do Pai, pode ser chamado, por isso mesmo, de “a obediência vivificante” (cf. Dom, 10). Ou, ainda, não há como escolher entre a fé do indivíduo e a fé da Igreja (cf. Dom, 11-13). Elas andam juntas. Da mesma forma, para discernir a vontade de Deus, a Igreja não se vê em face da opção de consultar a Escritura ou a Tradição, mas ambas. Várias outras dicotomias semelhantes manifestam-se, justamente, como falsas dicotomias, à luz daquele texto. Nenhuma eclesiologia correta pode se sentir satisfeita com uma série de alternativas mutuamente excludentes, tais como: a Palavra de Deus ou a autoridade da Igreja, o ministro ordenado ou a laicato, a igreja local ou a igreja universal, sinodalidade ou primazia. A falta de consenso com relação à autoridade, freqüentemente, resulta do erro de se oporem duas realidades, ou dois valores, ou dois assuntos, que, simplesmente, não deveriam ser opostos. A qualidade genial de O Dom da Autoridade consiste em mostrar isso continuamente.
O resultado dessa catolicidade teológica é um texto muito rico do ponto de vista eclesiológico. Não terei a pretensão de julgar a exatidão do documento quanto a refletir a herança doutrinal Anglicana, mas os Católicos encontrarão nele muitos ecos dos temas com os quais se familiarizaram a partir do Concílio Vaticano Segundo e dos escritos dos Papas Paulo VI e João Paulo II. Na verdade, nos que são, provavelmente, alguns dos parágrafos mais extraordinários que já apareceram nos diálogos ecumênicos, nota-se um esforço para reafirmar algumas das doutrinas essenciais da Pastor aeternus, do Vaticano I, sobre a primazia e a infalibilidade papal (Dom, 45-48).
Parte I: Edificando com base em Consensos Anteriores
O texto tem quatro partes, sendo a primeira uma retrospectiva. Volta-se para o passado, procurando resumir as convergências que já haviam sido alcançadas nos textos anteriores da ARCIC sobre autoridade (a “Declaração de Veneza”, de 1976, e a “Elucidação” e “Declaração de Windsor”, de 1981). As respostas oficiais aos textos anteriores, fornecidas pela Comunhão Anglicana, em 1988, e pela Igreja Católica Romana, em 1991, foram de grande ajuda para a comissão do diálogo delinear os temas específicos a serem examinados nesse terceiro documento sobre autoridade. Essas respostas oficiais auxiliaram a comissão a formular sua meta de buscar um consenso ulterior nas seguintes questões:
a relação entre Escritura, Tradição e o exercício da autoridade de magistério; colegialidade, conciliaridade e o papel dos leigos em tomadas de decisão; o ministério Petrino da primazia universal com relação à Escritura e Tradição (Dom, 3).
O fato de O Dom da Autoridade estar tentando avançar justamente em questões julgadas, pelas respostas oficiais, merecedoras de maiores considerações é importante para situar o papel do documento na avaliação do grau de consenso entre Anglicanos e Católicos sobre autoridade. Esse consenso será mais amplo e mais profundo do que fica evidente no texto em si, justamente porque este, até certo ponto, se limita a problemas não suficientemente resolvidos pelos consensos anteriores. A tópicos tais como o ministério do episcope, primazia regional, jurisdição, ius divinum e os textos Petrinos do Novo Testamento, é dada grande relevância nos documentos anteriores, que não devem ser esquecidos. Assim, devemos considerar seriamente o subtítulo “Autoridade na Igreja III”.
Parte II: Autoridade na Igreja
Esta e a Parte III representam o que é precisamente o novo nível de consenso alcançado por O Dom da Autoridade. A Parte II discute autoridade com referência a Igreja local e universal (Dom, 13-14,27-28: 30), Escritura e Tradição (Dom, 14-23), e apostolicidade e catolicidade (Dom, 16-17; 26-27). Todo o povo de Deus é o receptor da Palavra de Deus, transmitida na Escritura e Tradição (Dom, 28). No interior da totalidade do povo, é dada atenção especial à relação entre o fiel individual e a Igreja local (Dom, 11-13) e à relação entre aqueles a quem foi confiado o ministério da episcope, de um lado, e, do outro, todo o povo agraciado com o dom do sensus fidei (Dom, 24-30). Os parágrafos seguintes tentam extrair alguns dos temas relevantes da Parte II.
Em primeiro lugar, a avaliação positiva da autoridade, que funciona como Leitmotif do texto, está muito clara na escolha feliz de fazer um refrão do termo hebreu “Amém”, que marca o ato e a postura bíblica de fé.
Em Jesus Cristo, Filho de Deus e nascido de uma mulher, o “Sim” da humanidade a Deus torna-se uma realidade humana concreta. Esse tema do “Sim” de Deus e do “Amém” da humanidade em Jesus Cristo é a chave para a exposição sobre autoridade nesta declaração. (Dom, 8).
Uma e outra vez, os vários tópicos tratados, tais como o ato de fé do fiel individual, a fé da igreja local, a recepção da Escritura e da Tradição ou a catolicidade que une igrejas locais no tempo e no espaço, são todos apresentados na positiva moldura do “Amém” a Deus, em resposta ao “Sim” de Deus dirigido aos seres humanos. Esse fio dourado continua através das partes restantes do documento, de tal forma que a última sentença do texto reúne, engenhosamente, todas as afirmações anteriores, colocando-as justamente no âmbito da busca da comunhão plena: “Assim, o “Amém” que os Anglicanos e os Católicos Romanos dizem ao único Senhor se aproxima de um “Amém” pronunciado em uníssono pelo único povo santo, que testemunha a salvação de Deus e o amor reconciliador em um mundo partido.” (Dom, 63). Desse modo, a comissão nos lembra, sabiamente, que o ato simples e incontrovertido de dizer “Amém” é relevante para o tópico da autoridade na Igreja. O exercício da autoridade dentro da Igreja e a aceitação desse exercício devem ser entendidos como parte do “Amém” da Igreja dirigido a Deus.
Essa abordagem positiva é reforçada pelo fato de que a Parte II se inicia com vários parágrafos marcantemente bíblicos e Trinitários. O material bíblico apela para a crença cristã na normatividade da Palavra de Deus. Uma atitude positiva para com a autoridade é sancionada pelas Escrituras. O próprio Jesus é o modelo de aceitação da autoridade do Pai e da obediência a ela no poder do Espírito Santo. O tema Trinitário ilustra o que foi proposto como sólido princípio metodológico usado no diálogo ecumênico, pelo decreto do Vaticano II sobre o ecumenismo, Unitatis redintegratio, 11, que chamava a atenção para a ordem ou “hierarquia” existente nas verdades da fé. Quando o tópico da autoridade eclesial é colocado no contexto das verdades centrais da fé, da economia do Deus Trino e Uno de realizar a salvação dos seres humanos, ele aparece num aspecto muito mais positivo. Por essa razão, O Dom da Autoridade deve ser mais convincente e acreditável, não apenas para Anglicanos e Católicos Romanos, mas para os membros de outras comunidades também.
A relação entre Tradição e Escritura, interpretação magisterial e recepção, domina a Parte II de O Dom da Autoridade. O texto toma a Tradição como ponto de partida, referindo-se, explicitamente, à famosa declaração da Comissão de Fé e Ordem de Montreal, em 1963 (Dom, 14-18). Nessa seção, o leitor tem a oportunidade de observar a admirável capacidade de síntese do texto. O Espírito Santo guia o processo da tradição (pneumatologia) através do ministério da Palavra e do Sacramento e na vida comum do povo de Deus (as três dimensões da comunhão que correspondem à atividade de Cristo profeta, sacerdote, e pastor/rei; Cf. Lumen gentium, 13-14 e Unitatis redintegratio, 2; Dom, 14). A Tradição é um “canal do amor de Deus”, “essencial à economia da graça”, um “ato de comunhão”, que “une as igrejas locais” umas às outras e “àquelas que as precederam na fé apostólica única”. Assim, o processo da tradição é de uma “recepção ... constante e contínua” em várias épocas e circunstâncias. Ele traz à tona o “Amém” que une toda a Igreja em sua resposta ao “Sim” de Deus para a humanidade (Dom, 15-16). Yves Congar sempre mostrou a enorme capacidade de síntese que caracteriza os escritos de tantos Pais da Igreja. Parece óbvio que esse texto também apresenta esse poder sintético. Seus autores decidiram, corretamente, empregar um modo patrístico de pensar.
A Escritura está dentro do contexto da Tradição. Ocupa um “lugar normativo” porque é “inspirada de maneira incomparável”; portanto, é “incomparavelmente autorizada”. A discussão da Escritura surpreende-nos por sua atenção para com aspectos hermenêuticos. A forma como ocorreu a composição dos livros do Novo Testamento, no contexto da abordagem de questões conhecidas das comunidades locais, durante a época apostólica, parece muito conforme com a índole da abordagem histórico-crítica, adotada pela maioria dos estudiosos da Bíblia (cf. Dom, 20-21). Mas mesmo aqui existe equilíbrio. A interpretação não é simplesmente relegada a estudiosos, mas é uma atividade eclesial. “O significado do Evangelho de Deus revelado é plenamente entendido apenas no âmbito da Igreja” (Dom, 23). Este parágrafo do texto não só afirma a necessidade da fé como pré-requisito hermenêutico, sem o qual é impossível uma interpretação adequada da Bíblia, mas também observa que “A fé da comunidade precede a fé do indivíduo” (Dom, 23). É gratificante ver, nessa discussão da autoridade da escritura, que a interpretação individual é apresentada como sendo guiada pela interpretação da comunidade e para ela contribuindo. Quando Dom, 23, afirma: “A Igreja não pode ser descrita como um agregado de fiéis individuais, nem sua fé pode ser considerada a soma das crenças desses indivíduos”, é difícil para um Católico não se lembrar de frases semelhantes usadas pelo Papa João Paulo II, ao falar da relação dos bispos com o colégio de bispos,(3) ou pela Congregação para a Doutrina da Fé, com referência à unidade das igrejas locais dentro da igreja universal.(4) Além disso, o conteúdo hermenêutico de O Dom da Autoridade encontra ressonância no trabalho recente, desenvolvido pela Comissão de Fé e Ordem, sobre a hermenêutica ecumênica. Seria muito interessante investigar como os resultados dessas duas comissões poderiam ser mutuamente esclarecedores.
Ocasionalmente, as divisões dos Cristãos têm sido atribuídas a uma suposta oposição entre a Escritura, que deve ser seguida por consistir na Palavra de Deus, e a Tradição, que tem sido acusada de contradizer a Escritura introduzindo novidades. Ou ainda, alguns têm considerado opostas a obediência às Escrituras e a obediência àqueles que exercem a autoridade na Igreja. Esse texto oferece-nos muitas passagens brilhantes, uma das quais responde com precisão a essas supostas oposições, monstrando, de forma muito satisfatória, a harmonia entre Escritura, Tradição, autoridade e obediência.
A formação do cânon das Escrituras foi parte integrante do processo de tradição. O reconhecimento destas Escrituras pela Igreja como canônicas, após longo período de discernimento crítico, foi um ato de obediência e, ao mesmo tempo, de autoridade. Foi um ato de obediência, pelo fato de que a Igreja discerniu e recebeu o “Sim” doador de vida de Deus através das Escrituras, aceitando-as como a norma de fé. Foi um ato de autoridade, pelo fato de que a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, recebeu e transmitiu esses textos, declarando que eram inspirados e que outros textos não deviam ser incluídos no cânon. (Dom, 22).
Os dois parágrafos incluídos no subtítulo específico “Recepção e Re-recepção” contêm propostas que serão muito satisfatórias para os Católicos, embora eu imagino que se possa dizer o mesmo também dos Anglicanos. Em primeiro lugar, O Dom da Autoridade afirma claramente que é toda a Tradição apostólica que é recebida pela Igreja. A resposta Católica Romana oficial à discussão da ARCIC I sobre autoridade havia apontado, explicitamente, como fraqueza a sugestão de que apenas doutrinas centrais pudessem ser assunto de ensinamentos solenes por parte daqueles que exercem a autoridade na Igreja.(5) Isso parecia sugerir que a Igreja pudesse permanecer, de certa forma, acima da revelação, declarando quais seriam as doutrinas centrais e normativas, e deixando por conta da liberdade individual dos fiéis as que não são julgadas centrais. Esse tema tem sido amplamente discutido nos últimos trinta anos, principalmente pelos que tentam explicar a compatibilidade entre os ensinamentos do Vaticano II sobre a “hierarquia das verdades” e a convicção tradicional de que a autoridade de Deus é a base de toda a revelação, convicção esta expressa, para citar apenas um exemplo, na Mortalium animos, de Pio XI, em 1928. Sem nenhuma ambigüidade, o texto aqui tratado dá testemunho de que Anglicanos e Católicos Romanos estão convencidos de que o “Amém” da Igreja é dado a toda a revelação de Deus, e não apenas ao que pode ser identificado como seus artigos mais fundamentais. Ao mesmo tempo, ilustra bem a hierarquia das verdades, como foi observado acima, quando relaciona organicamente suas várias afirmações entre si e com as verdades fundamentais sobre a Trindade, como a base última da vida da Igreja e do exercício da autoridade eclesial.
Além disso, a recepção é apresentada como uma atividade em que a memória da Igreja é refrescada e até sanada. Em minha opinião, esse é um dos mais profundos e promissores temas ligados à noção teológica de recepção. Harmoniza-se bem com a chamada de Jesus à conversão, a metanoia, e a mudança de mente e de coração. Nesse sentido, a noção de “re-recepção” pode até encontrar fundamentos no Velho Testamento, no chamado dos profetas à lembrança da aliança esquecida e à mudança de vida de acordo com ela. Isso se assemelha muito à abordagem Católica do ecumenismo, que sempre enfatiza a conversão como parte absolutamente necessária do processo de comunhão plena. O Papa João Paulo II pode ter até cunhado uma nova expressão no que se refere a isso, falando do “diálogo da conversão”.
A Igreja Católica precisa entrar no que se pode chamar de “diálogo da conversão”, que constitui o fundamento espiritual do diálogo ecumênico. Nesse diálogo, que se desenvolve perante Deus, cada indivíduo precisa reconhecer suas próprias faltas, confessar seus pecados e se colocar nas mãos do nosso Intercessor perante o Pai, Jesus Cristo. ... O “diálogo da conversão ” com o Pai por parte de cada Comunidade, com a plena aceitação de tudo o que ele exige, é a base de relações fraternas que devem ir além de um mero entendimento cordial ou de uma sociabilidade externa. Os laços de koinonia fraternal devem ser formados perante Deus e em Jesus Cristo. (Ut unum sint, 82).
A Parte II conclui com seis parágrafos que relacionam a autoridade à catolicidade da Igreja. Vários aspectos importantes são mencionados. Em primeiro lugar, a Igreja é considerada como um todo, estendendo-se no espaço e no tempo (Dom, 26). Devemos ver nisso uma oposição clara a uma eclesiologia que postulasse a igreja local como uma comunidade auto-suficiente. Essa mesma idéia é repetida, de modo ainda mais explícito, na discussão sobre a sinodalidade, na Parte III:
A interdependência mútua de todas as igrejas é essencial à realidade da Igreja como Deus quer que ela seja. Nenhuma igreja local que participa da Tradição viva pode se considerar auto-suficiente (Dom, 37).
Mesmo a Eucaristia, ponto alto da vida da igreja local, revela o dinamismo inerradicável que coloca a comunidade local em comunhão com a unidade católica do todo.
Essa igreja local é uma comunidade eucarística. No centro de sua vida está a celebração da Santa Eucaristia, em que todos os fiéis ouvem e recebem o “Sim” de Deus dado a eles em Cristo. Na Grande Ação de Graças, quando se comemora a lembrança do dom de Deus na obra salvadora de Cristo crucificado e ressuscitado, a comunidade está unida com todos os Cristãos de todas as igrejas que, desde o início e até o fim, pronunciam o “Sim” da humanidade a Deus — o “Amém” que o Apocalipse afirma estar no âmago da grande liturgia do céu (cf. Ap 5.14; 7.12). (Dom, 13).(6)
Em segundo lugar, a Igreja “como um todo” é apresentada como o único sujeito adequado para receber e passar adiante a Tradição viva. Leigos, teólogos e ministros ordenados têm, todos, a responsabilidade de receber e divulgar a Palavra de Deus, cada um de acordo com sua capacidade específica (Dom, 28). Os católicos reconhecerão imediatamente a afinidade desse parágrafo com Lumen gentium 12, do Vaticano II, que afirma que “o povo santo de Deus também partilha do ofício profético de Cristo” e que “todo o corpo de fiéis ... tem uma unção que vem do Santo” (cf. 1 Jo 2.20 e 27). Nesse contexto, O Dom da Autoridade descreve o sensus fidei como “uma capacidade ativa de discernimento espiritual, uma intuição formada pelo culto divino e pela vida em comunhão como membro fiel da Igreja” (Dom, 29). A discussão do sensus fidei, e sua noção correlativa de sensus fidelium, parecem ser um dos principais modos como a ARCIC II desempenha o encargo requerido pela resposta oficial Anglicana à ARCIC I, que solicitou que o diálogo explorasse mais “o papel do laicato em tomadas de decisão dentro da Igreja”.(7) A relação entre os que exercem a episcope, “o ministério da memória”, por um lado, e todo o povo, cuja recepção da Palavra de Deus na fé pode ser resumida na expressão sensus fidelium, por outro lado, é descrita por analogia com uma sinfonia. Como o Espírito Santo está trabalhando na Igreja, existe harmonia entre episcope e sensus fidelium. O “ministério exercido pelo bispo, e por pessoas ordenadas sob os cuidados do bispo,” está atento e alerta “para o sensus fidelium, o qual compartilham ... Assim, o sensus fidelium do povo de Deus e o ministério da memória existem juntos em relação recíproca” (Dom, 30). Essas afirmações são verdadeiras. Ao mesmo tempo, perguntamo-nos se o texto não poderia considerar, também, a possibilidade real de tensão dentro da comunidade no que concerne a questões de fé e organização. Voltarei a este assunto numa seção sobre possíveis melhorias que tornariam ainda mais marcante o consenso registrado no texto presente.
Parte III: O Exercício da Autoridade na Igreja
O uso do termo “exercício” aqui deve ser notado. O Dom da Autoridade comenta o estilo em que a autoridade deve ser exercida dentro da Igreja, referindo-se, principalmente, à “atitude e o exemplo” de Jesus e ao seu modo “diferente”, caracterizado pelo serviço de autodoação (cf. Dom, 5, 9, 35, 48, 49). O texto não esconde o fato de que a autoridade pode ser exercida de modo abusivo e deformada pelo pecado ou pela fraqueza daqueles que a exercem (Dom, 5, 25, 48). Tendo sido dito isto, a Parte III não se refere apenas às virtudes necessárias para o exercício da autoridade na Igreja, mas também à finalidade, aos sujeitos e às características desse exercício. Parece haver cinco temas específicos nesta seção, cada um dos quais merece breve comentário: unidade para a missão, sinodalidade, verdade, primazia e disciplina.
Do simples ponto de vista do número de parágrafos do referido texto, a seção dedicada à missão e à unidade fica exatamente no meio. Poderíamos argumentar que ela também é o coração doutrinário do consenso. Os parágrafos 32 e 33 tentam fornecer a raison d’être da autoridade na Igreja. Qual é sua finalidade? De forma muito útil, a comissão coloca sua finalidade dentro do contexto da finalidade da Igreja como tal. A Igreja existe como um instrumento para continuar a missão de Cristo de instaurar o Reino de Deus. A verdadeira natureza do Reino é a comunhão.(8) A missão da Igreja é ser um instrumento de comunhão (cf. 1 Jo 1.1-3). A falta de unidade prejudica essa missão; Jesus reza para que seus seguidores sejam um, “para que o mundo possa acreditar” (Jo 17.21). O texto em questão toca nesses pontos:
Quando os Cristãos não estão de acordo sobre o próprio Evangelho, a sua pregação dele com poder é prejudicada. Quando não se tornam um na fé, não podem ser um na vida, e, assim, não podem demonstrar plenamente que são fiéis à vontade de Deus, reconciliação de todas as coisas no Pai através de Cristo (cf. Cl 1.20) ... É um desafio e uma responsabilidade para os que têm autoridade dentro da Igreja, exercer o seu ministério de forma a promover a unidade de toda a Igreja na fé e na vida, por caminhos que enriqueçam, e não diminuam, a diversidade legítima das igrejas locais.”. (Dom, 33).
Da perspectiva católica, isso é de grande ajuda no início de uma seção que tratará dos temas de episcopado, sinodalidade e primazia. Lumen gentium 23 associa intimamente o ministério dos bispos e do Papa com o papel de servir à unidade da Igreja, e isso no contexto da missão da Igreja de anunciar o Evangelho no mundo todo.(9) Poder-se-ia dizer que os temas dominantes da eclesiologia Católica, no período após o Vaticano II, aglutinam-se, todos, em torno dos tópicos da comunhão (unidade) e da missão. Até os sínodos gerais mais recentes, relativos ao laicato, aos ministros ordenados e aos que fizeram votos para a vida consagrada têm desenvolvido, todos eles, a compreensão dessas vocações em termos da eclesiologia dual de comunhão e missão. O Papa João Paulo II guiou-se por essas discussões, ao escrever suas três exortações apostólicas que foram o fruto desses sínodos: Christifideles laici, Pastores dabo vobis e Vita consecrata. Agora, em O Dom da Autoridade, os membros da ARCIC II deram-nos dois parágrafos valiosos, relacionando autoridade na Igreja justamente com sua natureza de comunhão e missão.
Os parágrafos referentes a sinodalidade (Dom, 34-40) começam com uma bela descrição de toda a Igreja, formada pela comunhão de todas as igrejas locais, como uma comunidade caminhando em uníssono (jogando com o termo grego synodos), guiada pelo Espírito Santo, em fidelidade à Palavra viva de Deus. Em seguida, vêm os parágrafos mais contundentes sobre os bispos. Eles precisam de certa autoridade pastoral para exercer a episcope efetivamente, dentro de uma igreja local. Isso significa que devem estar aptos a tomar e implementar decisões pelo bem da comunhão. Os fiéis “têm o dever de acatar e aceitar” essas decisões. “A jurisdição dos bispos é uma conseqüência do chamado que receberam para conduzir suas igrejas ...; não é um poder arbitrário concedido a uma pessoa em detrimento da liberdade de outras”. Existe uma complementaridade entre bispo e comunidade que é simbolizada e expressa pelo diálogo orante entre presidente e povo, durante a celebração da Eucaristia. Essas afirmações, todas do Dom, 36, conseguem harmonizar uma autoridade episcopal clara e decisiva com um respeito sensível à fé dos fiéis individuais que constituem a comunidade. Esse é o tipo de autoridade que associamos naturalmente com o próprio Jesus, pastor e bispo de almas (cf. 1 Pd 2.25). A seção prossegue relembrando algumas das estruturas que auxiliam a sinodalidade, observando que “a manutenção da comunhão requer que haja, em todos os níveis, uma capacidade de decisão adequada a cada nível. Quando essas decisões levantam questões sérias para uma comunhão maior das igrejas, a sinodalidade precisa encontrar uma expressão mais ampla” (Dom, 37). Para realizar essa sinodalidade, os bispos precisam se reunir. A consulta aos fiéis é outro aspecto importante de sua supervisão episcopal (Dom, 38). Os parágrafos 39-40 oferecem um relato fascinante das diversas formas em que os Anglicanos e os Católicos Romanos expressam a sinodalidade, particularmente interessante devido às diversas ênfases presentes nas descrições. O parágrafo 39 expressa confiança na prática extensiva da sinodalidade e da consulta aos laicos dentro da Comunhão Anglicana; mas parece quase precisar “protestar demais” que os bispos têm uma responsabilidade “distinta e crucial”, um “ministério próprio e único” de supervisão. Por outro lado, o parágrafo 40, sobre a Igreja Católica Romana, pressupõe um forte exercício de autoridade episcopal e primacial, mas parece quase precisar “protestar demais” que “a tradição da sinodalidade não terminou”, e que os três concílios pós-Reforma, celebrados pela Igreja Católica Romana, e, especialmente, muitos desenvolvimentos estruturais, implantados desde o Vaticano II, têm estimulado um grau maior de sinodalidade. O texto acrescenta: “Complementando essa sinodalidade colegial, um crescimento da sinodalidade em nível local está promovendo a participação ativa de leigos na vida e na missão da igreja local “ (Dom, 40). Isto dá a impressão de que a participação Católica leiga ocorre apenas em nível da igreja local, e pode, assim, minimizar indevidamente sua participação em nível nacional, regional e até universal (em sínodos gerais, por exemplo). Essas duas ênfases diversas aparecem novamente, na Parte IV, quando a comissão enumera algumas questões referentes a Anglicanos e Católicos Romanos, respectivamente (Dom, 56-7).
A seção sobre perseverança na verdade (Dom, 41-44) tenta agrupar várias informações que poderiam parecer estar em tensão mútua. Expõe claramente que Anglicanos e Católicos Romanos podem afirmar tanto a indefectibilidade quanto a infalibilidade da Igreja. Assim como o Vaticano I havia ensinado que o Papa, sob certas condições, pode exercer “aquela infalibilidade de que Cristo desejava que sua Igreja fosse dotada” (Denziger-Hünermann, 3074), a ARCIC II observa que a confiança, sustentada pela Bíblia, que os Cristãos justificadamente têm a respeito da proclamação da verdade do Evangelho repousa na confiança posta na promessa de Jesus de que o Espírito Santo não abandonará a Igreja como um todo, e a guiará em direção a toda a verdade. É nessa confiança que consiste nossa convicção comum da “indefectibilidade” da Igreja. O texto tenta harmonizar essa confiança com a experiência de que o desenvolvimento doutrinal, que pode levar, eventualmente, a novas formulações de fé, consiste em um processo prudente e cuidadoso em que tais formulações são examinadas. O “exame” aqui mencionado deve ser entendido segundo o Ensaio sobre o Desenvolvimento de Doutrina (Essay on the Development of Doctrine), de Newman, que relata como a Igreja chegou a novas formulações, tais como o uso do termo homoousious para descrever a relação do Filho com o Pai. No contexto da indefectibilidade, O Dom da Autoridade afirma, sem ambigüidade, que é justamente função do colégio de bispos “discernir e ministrar ensinamentos confiáveis por expressarem a verdade de Deus com segurança”. Em algumas circunstâncias, os bispos precisam “examinar novas formulações de fé” urgentemente e podem até, “assistidos pelo Espírito Santo ... chegar, juntos, a um julgamento que, sendo fiel à Escritura e consistente com a Tradição apostólica, está preservado do erro” (Dom, 42).
Uma das questões mais cruciais no texto surge precisamente nesse ponto, em que a ARCIC II tenta harmonizar a autoridade infalível de magistério do colégio de bispos com a recepção de seus ensinamentos por todo o corpo de fiéis. No parágrafo 43, O Dom da Autoridade aborda uma preocupação presente em ambas as respostas oficiais aos textos da ARCIC I sobre autoridade. Como já observamos, a resposta Anglicana apontava para a necessidade de maiores investigações sobre o papel do laicato nas tomadas de decisão dentro da Igreja. O texto atual parece realizar essa tarefa, principalmente em suas reflexões sobre o sensus fidelium e a recepção, ambos em debate em Dom, 43. A resposta Romana oficial, por outro lado, cita várias passagens da ARCIC I, tais como:
… Os Anglicanos não aceitam a posse garantida de tal dom de assistência divina nos seus julgamentos como estando necessariamente vinculada ao ofício do Bispo de Roma, em virtude do que suas decisões formais possam ser consideradas totalmente seguras antes de sua recepção pelos fiéis.(10)
Enquanto esse texto versa sobre o ensinamento do Bispo de Roma, a questão central refere-se a “recepção”, justamente o tema do parágrafo 43, que estamos examinando agora. A resposta Católica Romana resume sua preocupação com esse aspecto da seguinte forma:
É feita uma afirmação clara, além disso, em Autoridade na Igreja: Elucidação n. 3, no sentido de que a recepção de uma verdade definida pelo Povo de Deus “não cria a verdade nem legitima a decisão”. Mas, como se observou a respeito da primazia, parece que, em outra parte, o Relatório Final vê o “assentimento dos fiéis” como uma exigência para o reconhecimento de que uma decisão doutrinal do Papa ou de um Concílio Ecumênico é imune de erro (AII, 27 e 31). Para a Igreja Católica, o conhecimento certo de uma verdade definida não é garantido pela recepção dos fiéis de que ela está em conformidade com a Escritura e a Tradição, mas pela própria definição autorizada por parte dos mestres autênticos.(11)
Como são abordadas essas questões no presente texto? Em primeiro lugar, o texto afirma que todo o corpo de fiéis participa, de formas distintas, do exercício da autoridade de magistério na Igreja. Não diz que todo o corpo de fiéis possui essa autoridade de magistério em associação com o colégio de bispos, que o parágrafo anterior (42) tinha indicado como uma autoridade que, em certas circunstâncias, pode chegar a um julgamento imune de erro. Qual é a natureza dessa participação? Nela, “o sensus fidelium está operando”, presumivelmente como uma das fontes consultadas pelos bispos antes de tomarem qualquer decisão. Os bispos não apenas consultam a Palavra de Deus expressa na Escritura e transmitida na Tradição, mas, também, ficam atentos ao modo como essa Palavra tem sido recebida pelo povo, que é guiado pelo dom do sensus fidei e cujo entendimento comum da Palavra pode ser chamado de sensus fidelium. O Dom da Autoridade quer dizer que tal participação por todo o corpo não é só um antecedente dos ensinamentos oficiais, mas uma conseqüência, também. O texto prossegue:
Como é a fidelidade de todo o povo de Deus que está em jogo, a recepção dos ensinamentos é parte integral do processo. Definições doutrinais são recebidas como autorizadas, em virtude da vontade divina que proclamam e, também, do ofício específico da pessoa ou pessoas que as proclamam dentro do sensus fidei de todo o povo de Deus (Dom, 43).
Parece, aqui, que a condição de “garantia” de uma definição autorizada não é a recepção. Antes, se fossemos falar em “garantia”, a ARCIC II diria que tais definições são “autorizadas” “em virtude da verdade divina que proclamam, tanto quanto por causa do ofício específico da pessoa ou das pessoas que as proclamam”. A frase “dentro do sensus fidei de todo o povo de Deus” não parece considerar a recepção como condição de possibilidade de uma definição doutrinal, mas confirmar a idéia, contida nos parágrafos 41 e 42, e, anteriormente, em Pastor aeternus, do Vaticano I, de que qualquer exercício de autoridade infalível de magistério só pode ser estabelecido, em última análise, como um exercício “daquela infalibilidade da qual Cristo desejava dotar Sua Igreja”. Entretanto, a recepção é parte “integral” de tais definições, porque a finalidade específica de uma definição é expressar a fé normativa da Igreja, e, portanto, a fé compartilhada por todos. Se os ensinamentos não fossem recebidos, essa finalidade não seria alcançada. Por que o corpo de fiéis aceita uma definição doutrinal? É
... porque reconhece que esses ensinamentos expressam a fé apostólica e operam no âmbito da autoridade e da verdade de Cristo, Cabeça da Igreja. A verdade e a autoridade de sua Cabeça são a fonte de ensinamento infalível no Corpo de Cristo. O “Sim” de Deus revelado em Cristo é o padrão pelo qual esse ensinamento autorizado é julgado. Esse ensinamento deve ser bem recebido pelo povo de Deus como um dom do Espírito Santo para manter a Igreja na verdade de Cristo, nosso “Amém” a Deus (Dom, 43).
A partir desse texto, parece claro que não é a aceitação por parte de indivíduos que serve de fonte do magistério infalível. A fonte, ao invés, é Jesus Cristo, Cabeça da Igreja, e que age através da Igreja. O Dom da Autoridade usa, aqui, os verbos “ser julgado” e “ser bem recebido” com referência ao magistério infalível. Um ensinamento pode ser julgado e bem recebido ao mesmo tempo? Significa isso que um fiel ou grupos de fiéis, ou o corpo de fiéis como um todo, por assim dizer, julgam definições solenes proferidas por um Concílio Ecumênico, ou por um Bispo de Roma que quer ensinar da maneira descrita pelo Vaticano I?
Não parece, com toda certeza, ser esta a intenção do texto. Não é que o fiel possua uma autoridade superior à de Cristo, ou à que o próprio Cristo exerce através do colégio episcopal. Imagino que a conjunção destes dois verbos, pelo contrário, pretende demonstrar, nesse contexto de recepção do magistério oficial, a mesma doutrina que o Papa João Paulo indicou, no contexto da relação entre filosofia e teologia, ou seja, de que não pode haver conflito último entre fé e razão.(12) A fé dos fiéis compromete toda a pessoa humana, cuja aceitação intelectual da doutrina, portanto, comprometerá necessariamente a capacidade de julgamento. Não podemos separar os dois verbos, “receber bem” e “julgar”, na recepção da doutrina definida, como se fosse possível dar as boas-vindas a um ensinamento como interpretação autêntica da palavra revelada de Deus, ainda que nos sentíssemos totalmente incapazes de julgá-lo passível de ser considerado como tal. Nesse caso, a fé seria reduzida a um fideísmo cego, rejeitado, com razão, tanto pela Fides et ratio quanto pela Dei filius, do Vaticano I, como não merecedor da dignidade da pessoa humana criada à imagem de Deus.
A seção sobre a verdade termina com a repetição do papel e da responsabilidade singulares do colégio episcopal, que “está ligado por sucessão aos apóstolos”, de manter a Igreja na verdade. Nesse contexto, O Dom da Autoridade reitera as afirmações do Vaticano II de que os bispos individuais ensinam em solidariedade com todo o colégio episcopal, e de que o ofício de ensinar deve ser fiel à Escritura e à Tradição, pois ele “não está acima da Palavra de Deus, mas ao seu serviço” (Dom, 44; cf. Vaticano II, Dei verbum, 10).
A seção dedicada à primazia (Dom, 45-48) inicia-se com o reconhecimento de que a sinodalidade da Igreja é servida não apenas pela autoridade conciliar e colegial, mas também pela primacial. Ambas comunidades reconhecem o ministério primacial, em vários níveis da vida eclesial. O parágrafo 46 confessa, explicitamente, seu débito para com o que deve ser umadas mais importantes conquistas da ARCIC I: o reconhecimento comum não só da necessidade do ministério primacial em nível universal, mas também da necessidade de que esse ministério seja exercido pelo Bispo de Roma. Se é verdade que as origens da divisão entre as duas comunidades se assenta “principalmente no problema da primazia papal”, como indica o Relatório de Malta, então, deve se dar à ARCIC I o crédito de já haver realizado um avanço historicamente importante.
A resposta oficial da Comunhão Anglicana ao tratamento dado à primazia pela ARCIC I pedia que se investigasse continuamente:
... o fundamento, na Escritura e na Tradição, do conceito de uma primazia universal, em conjunção com a colegialidade, como instrumento de unidade, que é o caráter de tal primazia na prática, e que se valesse da experiência de outras Igrejas Cristãs no exercício da primazia, colegialidade e conciliaridade.(13)
Quanto ao último pedido, o parágrafo 4 de O Dom da Autoridade menciona, brevemente, que tanto os Anglicanos quanto os Católicos Romanos estão tentando permanecer abertos à experiência de outras igrejas no que diz respeito à natureza e ao exercício da autoridade. Daí em diante, o próprio texto não faz referência explícita a outras igrejas, embora sua descrição da Igreja como o lugar em que “a palavra de Deus é pregada e os sacramentos de Cristo são celebrados” (Dom, 17-18) pareça ecoar um tema eclesiológico caro à Reforma Protestante, enquanto que a estrutura da discussão de colegialidade e conciliaridade em termos de “sinodalidade” (Dom, 34-40; 45) provavelmente seria compatível com o pensamento ortodoxo. Considerando as bases na Escritura e na Tradição, o texto presente relembra as reflexões bíblicas mais extensas em Autoridade na Igreja II, 2-9, e acrescenta um texto e alguns exemplos do período patrístico. A menção das celebrações litúrgicas Anglicanas de dois bispos de Roma, Leão e Gregório, é uma adição particularmente agradável aqui. A relação entre primazia e colegialidade é conduzida a partir do modo como os tópicos estão ligados na parte III do Dom: a sinodalidade leva à discussão da perseverança na verdade, e, daí, ao tratamento da primazia. Finalmente, o “caráter” da primazia, em termos da sua finalidade de servir à unidade, sua origem no modelo fornecido pelo próprio Jesus em sua escolha de um dentre os doze, seu estilo colegial, e sua vulnerabilidade às fraquezas de seu portador parecem, todos, ser abordados no Dom, 46-48. Assim, o texto dá a impressão de ter respondido a todos os assuntos mencionados na resposta oficial Anglicana.
E quanto à reação Católica Romana ao tratamento da primazia pela ARCIC I? As dificuldades Católicas diziam respeito ao que poderia ser considerado como os dois componentes gerais dos ensinamentos do Vaticano I sobre o papado: primazia e infalibilidade. Quanto à primazia, a resposta oficial questionou a declaração da ARCIC I de que, “numa igreja sem comunhão com a Sé Romana, pode não faltar nada do ponto de vista da Igreja Católica Romana, mas ela não pertence à manifestação visível da plena comunhão cristã mantida na Igreja Católica Romana” (AII 12). Ao invés disso, em tal igreja “falta mais do que apenas a manifestação visível da unidade”.(14) A ARCIC II parece responder a isso quando afirma, claramente, que “a interdependência mútua de todas as igrejas é essencial à realidade da Igreja como Deus quer que ela seja” (Dom, 37), e que “as exigências da vida da igreja demandam um exercício específico de episcope a serviço de toda a Igreja” (Dom, 46). Por sua própria natureza, a igreja local não é auto-suficiente (Dom, 37). Desse modo, algo mais do que apenas a manifestação visível da unidade está em jogo na questão da comunhão com aquele ministério que serve como ponto de referência para a unidade do todo.
Além disso, a resposta Católica considerou que a ARCIC I não alcança a crença Católica de que “a primazia do Bispo de Roma pertence à estrutura divina da Igreja” e de que “a primazia dos sucessores de Pedro [é] algo positivamente tencionado por Deus e resultante da vontade e da instituição de Jesus Cristo”.(15) Em resposta, a ARCIC II repete a ARCIC I, afirmando que o “modelo de aspectos primaciais e conciliares complementares da episcope a serviço da koinonia das igrejas deve ser realizado em nível universal” (grifo meu). A referência ao Novo Testamento destaca a escolha de Pedro pelo próprio Jesus Cristo, enquanto que o texto de Santo Agostinho fala da “preeminência reconhecida de Pedro” e relaciona as palavras proferidas a Pedro sozinho ( “Confio-te”), com os dons concedidos à Igreja como um todo (todos os textos extraídos do Dom, 46). Assim, O Dom da Autoridade parece estar dizendo que o ministério primacial é do esse e não do bene esse da Igreja. É exigido. Além disso, as evidências bíblicas e patrísticas fornecidas pressupõem que a iniciativa de prover a Igreja do que ela precisava partiu do próprio Jesus.
Isso não significa comprometer o texto com uma interpretação fundamentalista das Escrituras ou das origens da Igreja. O conceito de ius divinum pode e deve ser entendido de forma a permitir que ele fique em harmonia com o que quer que possa surgir como resultado confirmado de uma pesquisa histórica corretamente realizada. As considerações recentes, feitas pela Congregação da Doutrina da Fé, sobre a primazia do sucessor de Pedro, admitem um “desenvolvimento doutrinal” e uma “claridade crescente” quanto a esse ministério. Ao mesmo tempo, a Congregação sublinha a continuidade desse desenvolvimento, e enfatiza que a crescente clareza se referia a uma convicção, datada desde a origem da Igreja, de que, “assim como existe uma sucessão aos apóstolos no ministério dos bispos, assim também o ministério da unidade, confiado a Pedro, pertence à estrutura perene da Igreja de Cristo, e essa sucessão está ligada à sé de seu martírio”.(16) Afirmando sua necessidade e referindo-se a textos bíblicos e patrísticos que falam das palavras de Jesus proferidas especificamente a Pedro, escolhendo-o para um papel que dizia respeito à Igreja como um todo, num chamado para exercer os poderes confiados ao todo, a ARCIC II parece afirmar, substancialmente, o que a Congregação também afirma quanto ao fundamento da primazia na vontade de Cristo para com a Igreja. Compreensivelmente, a discussão da Congregação sobre a primazia é muito mais extensa, e suas afirmações são mais explícitas. Ainda assim, suponho que a ARCIC poderia declarar sucintamente que “O episcopado e a Primazia, reciprocamente ligados e inseparáveis, são de instituição divina”.(17) Com base no que é dito no texto como um todo, essa declaração poderia ser aceitável pelas duas comunidades.
Assim como, após apresentar o exercício sinodal da autoridade pelo colégio de bispos em geral (Dom, 34-40), O Dom da Autoridade prossegue com a questão mais específica de sua autoridade de magistério (Dom, 41-44), também sua discussão de uma primazia universal (Dom, 46) conduz a um parágrafo sobre a autoridade de magistério do primaz (Dom, 47). O texto contempla claramente a possibilidade de “definição solene pronunciada da cátedra de Pedro”, frase obviamente inspirada pela locução latina ex cathedra (da cadeira). O parágrafo 47, de modo semelhante à Pastor aeternus, do Vaticano I, afirma que esse poder de ensinar deriva, e está, de certa forma, incluído no ministério da primazia: “A recepção da primazia do Bispo de Roma acarreta o reconhecimento desse ministério específico do primaz universal”.(18) Parece que a intenção primeira desse parágrafo é antecipar e evitar aquelas “dificuldades e mal-entendidos” que surgiram em torno desse ministério particular de discernimento da verdade.
Qualquer um familiarizado com o Vaticano I lembrará a famosa relatio do Bispo Vincent Gasser, porta-voz da Deputação de fide do concílio, proferida em 11 de julho de 1870, discurso este citado em quatro notas do parágrafo principal do Vaticano II sobre autoridade de magistério e infalibilidade (Lumen gentium 25)! O Bispo Gasser tentou aplacar os temores de alguns bispos Católicos de que a definição da infalibilidade papal estabeleceria o Papa como uma autoridade que poderia impor à Igreja toda uma doutrina solenemente definida com base apenas em sua decisão arbitrária. O argumento de Gasser dependia da interpretação de três adjetivos: pessoal, separada e absoluta. Em que sentido a infalibilidade papal pode ser qualificada por estes adjetivos? Quanto ao terceiro, Gasser admite, abertamente, que (são suas palavras) “em nenhum sentido a infalibilidade papal é absoluta, porque infalibilidade absoluta pertence a Deus somente...”.(19) Em que sentido pessoal? “Na verdade, diz-se que a infalibilidade é pessoal para que, assim, seja excluída uma distinção entre a Sé e o que ocupa a Sé. ... defendemos a infalibilidade pessoal do Pontífice Romano porquanto essa prerrogativa pertence, pela promessa de Cristo, a cada um e todo sucessor legítimo de Pedro em sua cátedra”.(20) Gasser esclarece que o adjetivo “pessoal” deve ser limitado, com precisão, ao papa, na medida em que ele é “uma pessoa pública, ou seja, como chefe da Igreja em sua relação com a Igreja Universal”.(21) O bispo nega explicitamente que o papa seja infalível quando considerado como uma pessoa ou um mestre particular.(22) Em que sentido a infalibilidade do papa é separada?
Pode ser chamada de separada ou distinta, porque se fundamenta em uma promessa especial de Cristo e, portanto, em uma assistência especial do Espírito Santo, diferente daquela de que todo o corpo da Igreja docente se beneficia quando unida com sua cabeça.(23)
A “Igreja docente”, segundo Gasser, deve ser entendida a partir da distinção, prevalecente no período, entre ecclesia docens e ecclesia discens. Assim, significa o colégio de bispos. Por causa dessa estrutura operante, ele teria sido incapaz de reconhecer uma “participação” na autoridade doutrinária da Igreja por parte do laicato. Tal limitação não precisa ser um problema para nós atualmente, quando uma doutrina e uma teologia muito mais adequadas do laicato demonstraram ter uma participação única na missão profética de Jesus. Mas o texto de Gasser, aqui, ajuda a captar o modo limitado como os bispos do Vaticano I entenderam ser “separado” o magistério do Bispo de Roma. Quando comparada ao do colégio de bispos, a relação do primaz com a Igreja toda é “totalmente especial”:
- ..a essa condição especial e distinta corresponde um privilégio especial e distinto. Portanto, nesse sentido, uma infalibilidade separada pertence ao Pontífice Romano. Mas, ao dizer isso, não separamos o Pontífice de sua união requerida com a Igreja. Pois o Papa é infalível apenas quando, exercendo sua função como mestre de todos os Cristãos e, representando, portanto, toda a Igreja, ele julga e define o que deve ser acreditado ou rejeitado por Todos. ... Certamente, não separamos o Papa, no ato de definir, da cooperação e do consentimento da Igreja, pelo menos no sentido de não excluir essa cooperação e esse consentimento da Igreja.
- .. E, assim, não excluímos a cooperação da Igreja porque a infalibilidade do Pontífice Romano não lhe é conferida como inspiração ou revelação mas através de uma assistência divina. Portanto, o Papa, por razão de seu ofício e da gravidade da matéria, utiliza meios adequados para discernir corretamente e enunciar apropriadamente a verdade. Tais meios são concílios, ou o auxílio de bispos, cardeais, teólogos, etc. Na verdade, os meios diferem de acordo com a diversidade de situações, e devemos acreditar piedosamente que, na assistência divina prometida por Cristo a Pedro e seus sucessores, está contida, simultaneamente, uma promessa sobre os meios necessários e adequados para que seja feito um julgamento pontifical infalível.
Finalmente, não separamos o Papa, nem em grau mínimo, do consentimento da Igreja, na medida em que esse consentimento não é declarado como condição antecedente ou conseqüente.(24)
Esta extensa citação do Bispo Gasser mostra-o tentando explicar o senso restrito em que a infalibilidade papal, definida pelo Vaticano I, era “separada” da Igreja, e os muitos sentidos em que ela não deve ser entendida como separada. Ele estava procurando convencer os bispos Católicos Romanos que haviam expressado sua preocupação com essa autoridade doutrinária especial do primaz.
Os comentários de Gasser são especialmente úteis para interpretar corretamente a intenção do parágrafo 47 de O Dom da Autoridade. Esse parágrafo parece se referir, basicamente, à mesma preocupação. Enquanto a autoridade doutrinária do primaz universal, ao declarar a fé autêntica de toda a Igreja, é “um exercício particular [grifo meu] do chamado e da responsabilidade do corpo de bispos de ensinar e afirmar a fé” e, como tal, é único, entretanto, é exercido “dentro do colégio... e não fora dele”, expressando apenas a fé de toda a Igreja e das igrejas locais. É fiel à Escritura e à Tradição, à “fé proclamada desde o início”.
A ARCIC I havia expressado a preocupação dos Anglicanos com a infalibilidade papal, principalmente no que concerne às definições dos dogmas Marianos, em 1854 e 1950, que, segundo a resposta Católica Romana oficial, “apontam para a necessidade de mais estudo a ser desenvolvido sobre o ministério petrino na Igreja”.(25) Esta preocupação Anglicana não aparece mais em O Dom da Autoridade, da ARCIC II. Em seu lugar, é feita uma tentativa de sublinhar a unidade entre o papa, quando em exercício daquela autoridade doutrinal única de definir solenemente uma doutrina, e a Igreja como um todo. Esta tentativa tem grandes afinidades com o discurso do Bispo Gasser, que conseguiu aplacar temores semelhantes dos bispos Católicos Romanos no Vaticano I.
Podem as afirmações da ARCIC II, relacionando esses ensinamentos especiais por parte do primaz à fé de toda a Igreja, ser interpretadas como fazer da aprovação de toda a Igreja a condição jurídica que garantiria tais ensinamentos, de modo que, na ausência de uma unanimidade universal anterior ou de uma recepção conseqüente, não pudesse ocorrer uma definição? Em minha opinião, interpretar a ARCIC II dessa forma seria compreender erroneamente o texto. A maior evidência disso é o modo como o texto compreende magistério e recepção no parágrafo 43. Ali, as definições ganham sua autoridade não da recepção, mas da verdade divina, da autoridade de Cristo, a Cabeça que age através do “ofício específico da pessoa ou pessoas que as proclamam”. O Bispo Gasser estava argumentando contra o ponto de vista Galicano de que as ações do primaz eram absolutamente condicionadas por sua recepção positiva. Procurou convencer os bispos que queriam garantir que fosse dada consideração suficiente à visão da Igreja como um todo, tal como expressa especialmente no parecer dos bispos, toda vez que o papa propusesse qualquer ensinamento de forma definitiva. Ele escreve:
É nesta necessidade estrita e absoluta que reside toda a diferença entre nós. A diferença não está na oportunidade, ou em alguma necessidade relativa que deva ser submetida totalmente ao julgamento do Pontífice Romano, conforme ele determinar de acordo com as circunstâncias.(26)
O Bispo Gasser conseguiu convencer os bispos que se preocupavam com essa questão de que a insistência Galicana na recepção, como condição absoluta para um ensinamento definitivo, eliminaria efetivamente esse ensinamento. Por essa razão, o Vaticano I acrescentou a sentença de que as definições papais são irreformáveis “em si, e não por causa do consentimento da Igreja”. Só nesse contexto antigalicano esta sentença pode ser compreendida corretamente, como as palavras citadas de Gasser esclarecem abundantemente. Gasser conseguiu aplacar os temores de alguns bispos. A ARCIC II também pretende evitar mal-entendidos sobre o ensinamento especial do primaz em relação ao todo. Parece repetir temas presentes na tão importante intervenção do Bispo Gasser no Vaticano I. Espera-se que também consiga aplacar os temores de Cristãos que se debatem com a questão sobre como a autoridade única de magistério do primaz pode ser considerada integrada na fé da comunidade como um todo, não ameaçando-a, como foi ameaçada pelos falsos mestres, tão freqüentemente mencionados no Novo Testamento (cf. At 20.29-31; Ef 4.14; várias passagens nas cartas pastorais e nas cartas joaninas), mas, de fato, confirmando-a (cf. Lc 22.31).
A seção sobre primazia conclui concordando com as declarações do Papa João Paulo sobre a fragilidade humana dos ministros Cristãos, incluindo aquele que exerce o ministério de Pedro. Daí, o texto passa para uma subdivisão final sobre disciplina (Dom, 49). Talvez esse parágrafo possa fornecer uma descrição mais clara do que quer dizer a palavra “disciplina”, pois ela tem uma variedade de conotações. Está o texto, aqui, procurando tecer mais comentários sobre o que Autoridade na Igreja: Elucidação 5 denominou “autoridade de um bispo [aqui, de um primaz], em certas circunstâncias, para exigir anuência”?(27) Tal interpretação parece correta à luz do resto da Elucidação 5, que fala da possível “necessidade de ação disciplinar”. De qualquer forma, o texto presente propõe um reconhecimento equilibrado, tanto do dever individual de seguir a direção apontada pela comunidade toda nas pessoas dos que exercem a autoridade, quanto do dever dos investidos de autoridade de respeitar a consciência daqueles aos quais são chamados a servir. Esse último aspecto não deve ser mal interpretado como cegueira em relação ao fato de que a consciência é formada dentro da comunidade, ponto este explicitamente reconhecido em Dom, 13.
Parte IV: Síntese e um Olhar para o Futuro
“Acreditamos que, se essa declaração sobre a natureza da autoridade e o modo de exercê-la for aceita e posta em prática, esta questão não será mais causa do prosseguimento de uma ruptura na comunhão entre nossas duas igrejas.” (Dom, 51). Essa é uma reivindicação muito forte e esperançosa sobre o nível de consenso presente em O Dom da Autoridade, bem como um reconhecimento da diferença entre teoria e prática (evidente na conotação da frase “e posta em prática”). Essa diferença é importante para interpretar a Parte IV.
A recapitulação de novos pontos de consenso, listados em Dom, 52, é muito impressionante, mas pode até ser demasiado modesta. Enquanto inclui a maioria dos pontos por nós discutidos até aqui, não menciona os parágrafos 32 e 33, que situam a autoridade justamente dentro do contexto de uma eclesiologia de comunhão e missão. Foi mencionado, acima, por que esses parágrafos são particularmente proveitosos, à luz das ênfases recentes na eclesiologia e no ensinamento oficial Católico Romano.
A descrição dos avanços no interior de cada comunidade (Dom, 53-55) parece bastante precisa. A Igreja Católica Romana, sem dúvida, tem dado nova atenção e importância ao exercício da autoridade em nível local e sinodal, com a inclusão do laicato nos últimos anos. Recentemente, os Anglicanos têm prestado mais atenção, e pretendem continuar a fazê-lo, ao exercício da autoridade em nível universal. Desse modo, parecem estar se movendo em direções que os aproximarão com respeito à autoridade e seu exercício.
As “Questões Defrontadas pelos Anglicanos/Católicos Romanos”, em Dom, 56-57, não devem ser vistas como contradizendo a declaração de consenso registrada em Dom, 51, mas como expressão da diferença entre teoria e prática. Como tal, apontar para esses desafios após afirmar o consenso anterior está plenamente em harmonia com o que o Papa João Paulo II chamou de “diálogo de conversão” (Ut unum sint, 82), mencionado acima.
Essas “Questões” (Dom, 56-57), juntamente com os parágrafos sob o título de “Colegialidade Renovada” (Dom, 58-59), respondem a um pedido, cada vez mais presente na literatura, sobre a recepção de documentos ecumênicos. Mais e mais comissões de diálogo são encarregadas, não só de produzir textos, como também de sugerir passos concretos para que um grau maior de comunhão possa encontrar expressão visível. A cooperação entre bispos Anglicanos e Católicos Romanos em encontros, preces, testemunho e mesmo no ensinamento conjunto está em plena harmonia com a experiência do Papa João Paulo II de colaborar, de várias formas, com outros líderes Cristãos, que ele relata no Capítulo II da Ut unum sint, intitulado “Os Frutos do Diálogo”. A sugestão de considerar a possível participação de bispos Anglicanos em visitas ad limina parece um gesto nobre, um modo concreto de expressar o reconhecimento Anglicano de uma primazia universal registrada nos parágrafos 45-48 de O Dom da Autoridade. Ao mesmo tempo, é fácil imaginar que esse passo demandaria certa prudência pastoral. Aqui, bem como no caso do magistério comum, haveria de se considerar cuidadosamente como esses passos seriam entendidos pelos fiéis e, tanto quanto possível, evitar a sua exploração pela mídia, que mostra bem pouco escrúpulo em apresentar os fatos pelo lado sensacinalista, de uma forma que pode ser perigosamente enganadora.
O Dom da Autoridade termina com alguns parágrafos que caracterizam, também, o ministério da primazia universal como um “dom”. Os Católicos devem acolher essa atitude benévola por parte de seus irmãos e irmãs Anglicanos. Muitas frases nessa seção provavelmente levarão alguns críticos a atacar o texto com a objeção de que apenas um certo tipo de primazia está sendo declarado, uma primazia que sustenta “a diversidade legítima” (Dom, 60) e que irá “proteger a investigação teológica” (Dom, 61), uma primazia que pode ser recuperada e re-recebida pelos Anglicanos apenas “sob certas condições claras” (Dom, 62). Em minha opinião, seria um erro interpretar estas frases como sugestão de um certo criptogalicanismo. A doutrina e a teologia Católica podem interpretá-las de forma compatível com um entendimento correto da primazia papal. No panorama ecumênico, pode-se dizer que nenhuma outra comunidade foi tão longe no consenso com Católicos Romanos sobre a primazia do Bispo de Roma. Na verdade, lembramos as palavras pungentes do Papa Paulo II ao dizer que, para o ecumenismo, não há “obstáculo” maior do que o papado.(28) Aqui, quiçá pela primeira vez no diálogo ecumênico, os Anglicanos, juntamente com seus parceiros Católicos Romanos no diálogo, falam dele como um “dom”.
Considerações Finais
Durante todo este comentário, procurei mostrar como a ARCIC II tentou abordar as preocupações manifestadas pelas duas respostas oficiais ao trabalho da ARCIC I sobre autoridade. Em geral, O Dom da Autoridade parece ter sido razoavelmente bem-sucedido ao tratar tais preocupações. Ao mesmo tempo, como era de se esperar, focalizando-as, pode ter perdido a oportunidade de desenvolver plenamente alguns temas enunciados com menos ênfase pelas respostas oficiais. Quanto a isso, gostaria de indicar apenas duas áreas em que acredito que um pouco mais de precisão poderia tornar a compreensão da autoridade presente no texto ainda mais adequada, e assim, aprofundar o consenso entre Anglicanos e Católicos Romanos.
Uma questão concerne ao que denominamos sensus fidelium. Não poderia o texto ser mais claro quanto ao significado preciso desta expressão? Ela é distinta do sensus fidei, descrito como “uma capacidade ativa de discernimento espiritual, uma intuição formada pelo culto divino e pela vida em comunhão como membro fiel da Igreja” (Dom, 29). O parágrafo 29 declara: “Quando essa capacidade é exercida de comum acordo pelo corpo de fiéis, falamos do exercício do sensus fidelium”. Que significa exercer o sensus fidei “de comum acordo”? Mais adiante, o sensus fidelium é descrito quase como uma força ou princípio ativo: “No interior da prática do sensus fidelium, existe uma relação complementar entre o bispo e o resto da comunidade.” (Dom, 36; veja também Dom, 1, 43 e 56). Finalmente, outro significado parece emergir, como se a frase se referisse não a uma capacidade subjetiva, exercida individualmente ou em comum, mas ao conteúdo doutrinário, relativo a assuntos de fé e moral, que é realmente acreditado pelos fiéis: “quando os bispos se reúnem em concílio, buscam discernir e articular o sensus fidelium” (Dom, 38). Parece-me que o texto melhoraria se restringisse o significado de sensus fidelium a este sentido final. Talvez o Vaticano II possa ajudar nesse ponto. A Lumen gentium 12, mencionada em Dom, 43, não usa a expressão sensus fidelium, mas se limita, simplesmente, a falar do “sensus fidei sobrenatural de todo o povo”.
Por essa apreciação da fé (sensus fidei), despertada e sustentada pelo Espírito da verdade, o Povo de Deus, guiado pela autoridade sagrada do magistério (magisterium) e em obediência a ela, recebe não a mera palavra dos homens, mas, verdadeiramente, a palavra de Deus (cf. 1 Ts 2.13), a fé confiada, de uma vez por todas, aos santos (cf. Jd 3). O Povo adere infalivelmente a essa fé, a penetra mais profundamente com um julgamento certo, e a aplica mais plenamente na vida cotidiana.
Aqui, o sensus fidei é, sem dúvida, uma capacidade subjetiva que acompanha a fé; é um dom do Espírito Santo. Se todo o povo, guiado por esse dom do sensus fidei, concordasse com um consenso universal sobre uma questão de fé ou moral, não erraria nesse ponto particular da crença (assim, Lumen gentium, 12). A expressão sensus fidelium não poderia se referir, precisamente, ao nível de consenso sobre qualquer questão particular de fé ou moral? Só no caso de unanimidade, poderíamos ter a certeza de que todo o corpo de fiéis está a salvo de erro. Não chegando a tal unanimidade, os pontos de vista comuns do povo todo não ficam reduzidos, dessa forma, à insignificância. Eles ainda assim contribuem para a interpretação da Palavra revelada de Deus. Mas esta própria afirmativa mostra o verdadeiro papel do sensus fidelium. Não é que a Igreja precise discernir o sensus fidelium como um fim em si. Antes, a finalidade última do discernimento é receber a Palavra de Deus, aderir a ela e aplicá-la à vida. O sensus fidei é um dom concedido a cada fiel para assisti-lo(la) ao fazer isso. O sensus fidelium é comparável a uma “leitura” daquilo em que os fiéis realmente acreditam. Tais esclarecimentos permitiriam à ARCIC II indicar mais claramente como o sensus fidelium contribui para o magistério autorizado, bem como reconhecer mais abertamente as dificuldades inerentes à tarefa de discernir aquilo em que os fiéis acreditam e o grau de sua unanimidade. Principalmente numa época em que a “opinião pública” é consultada com tanta freqüência e parece ser tão maleável, uma reflexão mais profunda sobre esse aspecto tão importante da vida eclesial seria de grande ajuda.
Uma segunda sugestão está ligada à primeira. É o seguinte. Não seria possível identificar mais claramente a autoridade episcopal específica de magistério justamente como uma participação, dada por Cristo, da sua própria autoridade de ensinamento? Esse tema está de alguma forma em O Dom da Autoridade, com certeza. Podemos congratular-nos particularmente com as referências Cristológicas nos parágrafos 36 e 43, e com a pneumatologia tecida ao longo do texto (cf. Dom, 4, 18, 28, 30, 35, 36, 41, 42, 43, 47, 49). Tais referências às missões do Filho e do Espírito Santo corroboram uma avaliação otimista da autoridade ministerial na Igreja. Ao mesmo tempo, é possível se perguntar se esse otimismo não permitiria uma maior atenção à ordenação episcopal como um rito sacramental epiclético, no qual o bispo recém ordenado recebe a graça de compartilhar, numa forma pastoral única, a autoridade de Cristo Bom Pastor.
Além disso, a proveitosa ênfase no laicato, principalmente através do recurso ao tema do sensus fidelium, pode, no entanto, dar a impressão de que os encarregados do “ministério da memória” têm acesso à Palavra de Deus principalmente através das convicções comuns do povo. É claro que, de fato, os bispos aprendem a Palavra de Deus com pessoas leigas. Quem poderá se esquecer daquelas palavras proferidas para Timóteo em nome de Paulo, que, ao lado de um certo encanto familiar, sugerem, ao mesmo tempo, o profundo enraizamento pessoal dos ministros ordenados em toda a comunidade de fiéis?
Evoco a lembrança da fé sincera que há em ti, uma fé que antes habitou em Loide, tua avó, e em tua mãe Eunice, e que, estou convencido, também reside em ti. Por isso recordo-te que tens de reavivar o dom de Deus que está em ti desde que te impus as mãos. (2 Tim1.5-6)
Assim sendo, não seria o texto ainda mais satisfatório se pudesse incluir uma reflexão mais desenvolvida sobre a relação entre o ministério ordenado e a proclamação da Palavra de Deus? Poderia utilizar, proveitosamente, aquelas passagens bíblicas em que Jesus compartilha sua missão de proclamação com os doze (tais como Mat 10.1-42). Poderia lembrar, também, a responsabilidade episcopal especial de manter e guardar a fé, idéia esta que poderia ser fundamentada não apenas no Novo Testamento, mas também em abundante material extraído dos escritos e da prática dos Pais da Igreja.
Os Anglicanos e os Católicos Romanos, convencidos ambos de que o episcopado faz parte da vontade de Deus para a Igreja, e não tendo entrado nunca em conflito formal sobre essa questão, poderiam sentir naturalmente menos necessidade de encontrar um sólido fundamento para o episcopado em suas declarações consensuais. Na verdade, uma crítica à Autoridade I foi justamente a de que focalizava muito a hierarquia e falava muito pouco sobre o laicato.(29) Uma vez que O Dom da Autoridade tenta cumprir o mandato especificado nas respostas oficiais à ARCIC I, é natural que o laicato seja colocado em relevo no texto. Talvez mais um pouco de atenção ao fundamento e ao significado sacramental da ordenação episcopal poderia melhorar ainda mais o que já é um consenso extraordinário.
No limiar de um novo milênio, parece bastante providencial, um sinal da influência do Espírito Santo, que, em alguns meses, tenham surgido declarações comuns importantes reivindicando um significativo consenso sobre duas das mais férteis questões doutrinárias que dividem comunidades Cristãs. Além de O Dom da Autoridade, estudado neste comentário, uma Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação Luterano-Católica foi publicada em 1998.(30) Embora esses documentos difiram quanto ao processo que levou à sua elaboração e às doutrinas específicas consideradas, as duas questões e os dois consensos não são independentes. Ambos se referem à cura e à elevação da natureza pela graça redentora de Cristo. A Declaração sobre Justificação aborda o modo como isso ocorre na vida da pessoa redimida. O Dom da Autoridade, por sua vez, contempla o efeito da graça na comunidade toda que é a Igreja, local e universal. Poderíamos fazer uma profecia segura de que o impacto desses consensos atingirá mais do que as relações entre a Igreja Católica Romana e apenas as comunidades Luterana e Anglicana. O Texto da Justificação poderia ajudar o diálogo Católico com muitas outras comunidades da Reforma. O texto da Autoridade pode fazer o mesmo, e também contribuir para a consideração comum sobre a primazia, que continuará a ser de grande interesse no tratamento das divisões entre as Igrejas Católica e Ortodoxa.
O Papa João Paulo II observou que o que nos une é muito maior do que o que nos divide. Ele espera que o novo milênio nos encontre mais juntos do que antes, mesmo que ainda não estejamos totalmente unidos. O acordo mais recente proposto pela Comissão Internacional Anglicana - Católica Romana tem esperança de realizar esse sonho. Sua esperança de que o “‘Amém’ que os Anglicanos e os Católicos Romanos dizem ao Senhor único” se aproximará de “um ‘Amém’ pronunciado em uníssono por um único povo santo testemunhando a salvação de Deus e reconciliando o amor em um mundo roto” não é vã. Seu trabalho ajudará a realizar esse testemunho comum e esse “Amém” comum tão convenientes e necessários na alvorada de um novo milênio.
(1) O Dom da Autoridade, parágrafo 5. Daqui em diante, todas as referências a esse documento aparecerão entre parênteses no texto, da seguinte forma: (Dom, número do parágrafo).
(2) A primeira declaração da ARCIC sobre autoridade (Autoridade na Igreja, 1976) observava: “Foi justamente no problema da primazia papal que nossas divisões históricas encontraram sua triste origem”. Texto extraído de Growth in Agreement, Genebra/Mahwah 1984, 88.
(3) Apostolos suos, 12. Texto italiano em Il regno-documenti 15, 1998, 487-492 em 490
(4) Communionis notio, 9. Texto inglês em Origins 22, 1992, 108-112.
(5) Veja “Catholic Response to the Final Report of ARCIC-I”, em Pontifical Council for the Promotion of Christian Unity, Information Service, N. 82, 1993/I, 49.
(6) Uma idéia semelhante aparece em Communionis notio, 11, ao afirmar que a própria celebração da Eucaristia demonstra que a Igreja local não é auto-suficiente, mas é, por sua natureza intrínseca, relacionada com o todo.
(7) Veja The Truth Shall Make You Free. The Lambeth Conference 1988, Londres, 1988, 211.
(8) Uma das declarações mais explícitas mostrando a “natureza de comunhão” do Reinado é a Redemptoris missio, 15, de João Paulo II.
(9) De fato, aqui, Lumen gentium está apenas expandindo o tema anunciado na primeira sentença da Pastor aeternus, do Vaticano I. Aquele texto identifica Jesus como o pastor aeternus (pastor eterno) e episcopos de nossas almas (1 Pd 2.25), que construiu sua Igreja de tal forma que “na casa de Deus todos os fiéis poderiam se unir pelos laços de uma fé única e da caridade viva” (Denzinger-Hünermann, Enchiridion symbolorum, 3050).
(10) Veja “Catholic Response to the Final Report of ARCIC-I”, em Information Service, N. 82, 1993/I, 49, citando Authority in the Church II, n. 31.
(11) Ibid, 49
(12) Cf. João Paulo II, Fides et ratio, 34 e todo o Capítulo IV, intitulado “A Relação entre Fé e Razão”, parágrafos 36-48. Nesse capítulo, João Paulo tenta mostrar como grandes teólogos do passado aplicaram a razão à fé, e lamenta a tendência, principalmente por parte de filósofos dos últimos séculos, de separar as duas.
(13) The Truth Shall Make You Free, 211
(14) Citações de “Catholic Response”, 49.
(15) Ibid., 50.
(16) Estes pontos e a citação (tradução minha) são tirados de “Il primato del successore di Pietro nel mistero della Chiesa. Considerazioni della Congregazione per la Dottrina della Fede”, em Il Primato del Successore di Pietro. Atti del Simposio Teologico. Roma, dicembre 1996, Cidade do Vaticano 1998, 493-503 em 493 e 495.
(17) Ibid., 497.
(18) Isso segue o modelo contido no Vaticano I, em que a capacidade do Bispo de Roma de definir a doutrina flui como conseqüência de seu ministério de primazia. Cf. Denzinger-Hünermann, 3065.
(19) Estou utilizando a tradução fornecida por Jates T. O’Connor, cujo The Gift of Infallibility. The Official Relatio on Infallibility of Bishop Vincent Gasser at Vatican Council I, Boston 1986, contém uma introdução e tradução da intervenção de Gasser, além de uma síntese teológica sobre a infalibilidade. O discurso do Bispo durou quatro horas, e ocupa cerca de 26 colunas de Mansi, Collectio Conciliorum Recentiorum, Vol. 52, Arhem 1927, 1204-1230.
(20) O’Connor, 41; Mansi, col. 1212.
(21) O’Connor, 42; Mansi, col. 1213.
(22) O’Connor, 41; Mansi, col. 1212.
(23) O’Connor, 42; Mansi, col. 1213.
(24) O’Connor, 43-44; Mansi, col. 1213-1214.
(25) “Catholic Response”, 49.
(26) O’Connor, 48; Mansi, col. 1215.
(27) Veja Growth in Agreement, 103.
(28) “O Papa, como sabemos todos, é, sem dúvida, o maior obstáculo no caminho ao ecumenismo. Que podemos dizer? Devemos nos referir, mais uma vez, a títulos que justificam nossa missão? Devemos, mais uma vez, tentar apresentá-la em seus termos exatos como ela dever ser — o princípio indispensável da verdade, da caridade e da unidade? Uma missão pastoral de orientação, de serviço, de irmandade que não desafia a liberdade e a honra de qualquer um com uma posição legítima na Igreja de Deus, mas, ao invés disso, protege os direitos de todos, e não exige nenhuma outra obediência a não ser a exigida dos filhos de uma família?” De “Address of Pope Paul VI to the Secretariat Given at the Conclusion of the Annual General Meeting. April 28, 1967”, em Information Service, N. 2, 1967, 4.
(29) Veja Elucidation 4, em Growth in Agreement, 102.
(30) Texto inglês, com Press Statement by Cardinal Cassidy and Official Catholic Response em Origins, 1998, 120-132.